“De batismo, sou Francisco do Vale Cardoso, mas Chico Cardoso para movimento artístico da década de 1979, no Amazonas, em Manaus, onde, de certa forma empírica, me meti a dirigir teatro”.
Com essa apresentação protocolar, Chico Cardoso (1961-2023) iniciou esta entrevista para a minha de dissertação de mestrado (PPGSCA/Ufam) em 2012, na Cidade Garantido, em Parintins (AM).
Em razão da peculiaridade do estudo, somente trechos compuseram o relatório final da pesquisa. A integra da entrevista está preservada para um futuro livro com o protagonismo de artistas parintinenses com atuação no Caprichoso e no Garantido.
Para o formato livro, a entrevista está editada de modo corrido, sem as perguntas, para que o entrevistado se dirija diretamente aos leitores, ao mesmo tempo em esses sejam provocados à interação artística.
Decidi publicá-la, aqui, por se tratar de um documento importante e necessário à compreensão da vida do artista que se dedicou as artes, como ênfase às artes cênicas, com olhar crítico e atuação inovadora.
Sua passagem pelos bois-bumbás Garantido e Caprichoso é marcada pela superação dos desafios do espetáculo que se renova a todo o instante para surpreender o espectador.
MEMORIAL | 4.out 2023
Foto: BNC Amazonas
Não tínhamos uma escola de artes. Na realidade, fiz Educação Artística e nem concluí curso porque não me interessavam as habilitações em Música e Artes Plásticas, as únicas oferecidas na época. Parece-me que até agora permanece isso. Só agora a UEA [Universidade do Estado do Amazonas] abriu o curso de Teatro, que era o que eu almejava.
Mas eu tive uma formação acadêmica até as vésperas da formatura, porque não deixei de estudar a história das artes, de pesquisar metodologias, processos de pesquisa, mecanismos de pesquisas. E me voltei, absolutamente, para o teatro, no qual atuei e atuo durante muito tempo como diretor de teatro e sou reconhecido pela comunidade artística.
Como coreografo, fui estudar dança em São Paulo, Rio de Janeiro, e em Minas Gerais, para trazer um pouco de técnica para Manaus, que não existia na época. Existia apenas o professor José Resende. Era ele quem detinha o conhecimento técnico, mas sua academia era elitista, só recebia os filhos dos barões da cidade.
Havia necessidade, portanto, de popularização da dança como expressão e movimento artístico. Passou a existir a partir do grupo Dança Viva, criado pela Conceição Sousa. Eu fiz parte desse grupo.
Na medida em que as nossas experiências avançavam, descobríamos que havia necessidade de amadurecermos no processo técnico mesmo. Investiguei profundamente a essência técnica do teatro, os bastidores das técnicas, como funciona uma vara, um refletor e como esses equipamentos são usados no espetáculo. Essa pesquisa me ajudou profundamente a entender a construção do espetáculo.
Atuando dessa forma em Manaus, tive contato com pessoas que já estavam trabalhando nos bois-bumbás de Parintins, João Pedro e a Liduína Mendes. O JoãoPedro conhecia o meu trabalho no teatro, não só como diretor, mas como professor de dança.
Envolvi-me realmente com a formação, para fundarmos um grupo emManaus que respondesse às expectativas daquele período. Isso era o final da década de 1970. Não podíamos falar muita coisa. No início dos anos de 1980, nos voltamos para um trabalho mais consistente, influenciados pelo Balé Stagium e pelo Grupo Corpo, que já adotam uma linguagem mais contemporânea, mais lingadas à realidade brasileira. Esses grupos nos inspiram para montar alguns trabalhos em Manaus, como Raça, Inapi, A Bota que amou um caboclo, Metal Madeira e Sinal Fechado. O Balé Stagium e Grupo Corpo passam por Manaus e deixam um legado fantástico para quem fazia dança e teatro.
No final dos anos de 1990, conheci o boi-bumbá em um espetáculo de curral, lá em Manaus. Fiquei muito impressionado com a quantidade e qualidade dos instrumentos e artistas mobilizados para o show: os batuqueiros, os dançarinos, o cantor e até por certa resistência: boi era coisa de dois pra lá, dois pra cá; coisa de folclore e coisa de polícia. Tínhamos isso na cabeça. Recusava-me a doar qualquer atenção ao boi-bumbá. Só no final dos anos de 1990 é que fui ter esse contato e vi que o boi-bumbá era uma possibilidade imensa, totalmente diferente daquilo que eu imaginava.
Com o convite da Liduína e do João Pedro, para vir ver como é que eles operacionalizam todo o trabalho no Garantido, mergulhei mais profundamente no boi-bumbá. E foi assim que descobri que o boi-bumbá é um espaço onde se praticam diversas expressões artísticas, ligadas a uma raiz folclórica, sim, mas que se atreve a mudar a cada dia essa herançae não tem medo de avançar, de amadurecer, de mobilizar novos valores para dentro dessa construção.
Foi assim que detectei que os tuxauas são instalações. São instalações se movem na arena, mas, ali, o artista se expressa por meio de uma concepção dada pela Comissão de Artes, que fornece para o artista instrumentos para ele representar, por exemplo, uma nação indígena, os valores culturais dessa nação indígena a partir de uma instalação; e essa instalação, depois, vira uma fantasia, que é desfilada dentro do bumbódromo.
Tudo isso vai me encantando. A possibilidade de formação da dança, porque, quando eu cheguei aqui, a dança era praticada de forma muito primária, muito dois pra lá dois pra cá, embora tivesse os arroubos de uma coreografia contemporânea. E isso me fascinou muito. Tentar fazer a ligação dessa linguagem folclórica com uma linguagem mais contemporânea. Era, por exemplo, o que procurava a o Balé Folclórico de Recife, o Balé Folclórico da Bahia, justamente pegar as raízes da cultura e fazer uma conexão com a dança contemporânea, para aprimorar a qualidade do movimento, a plástica do movimento e tornar isso uma expressão artística de fato. E assim a gente começou um trabalho junto aos coreógrafos; de estabelecer os conhecimentos, enfim, técnicos mesmos, da criação coreográfica, de como estabelecer uma relação mais profissional, inclusive, assim, com a metodologia de transmissão do conhecimento, que não havia nenhuma, não se fazia aula de dança, não se tem um sistema de dança com as outras artes. Era fundamental que a gente realmente partisse para um corpo a corpo com a equipe técnica do boi para dar esse suporte mais técnico da arte, tanto na área de dança quanto na área do tetro.
E a gente avançou em muitas coisas a partir desse conhecimento que eu trouxe para o boi. Por exemplo, a parte cênica do boi se configurou de uma maneira mais espetacular mesmo, porque aí a gente criou o conceito de teatro de arena, fizemos uma opção claramente para o palco italiano dentro do processo de construção do boi, por conta de que os mecanismos e as disposições de elementos técnicos dentro do bumbódromo são totalmente equivocados.
Um teatro de arena, que é para ser feito em 360 graus, ele, na realidade, não atende a parte sonora, não atende a parte da iluminação. Para se usar ele [o espetáculo teatral] nos 360 graus haveria que se fazer um trabalho recuperação dentro do bumbódromo e uma adequação técnica para que a iluminação fluísse dentro da arena, para que o som repercutisse de uma forma consistente dentro da arena.
Foi a partir desse momento que a gente percebeu que a batucada, que é o elemento rítmico, a orquestra repercussão, deveria ficar numa espécie de fosso, já que os jurados têm uma visão de público do palco à italiana.
Todos esses instrumentos foram colocados à disposição da Comissão de Artes para que a gente pudesse mobilizar esse conhecimento em busca de um boi ajustado para uma coisa mais artística, mais técnica, sem muito amadorismo.
A gente conseguiu avançar em muitos aspectos a partir daí. Até porque tanto a Comissão de Artes quanto os artistas que receberam essa inserção pelos aspectos mais técnicos do boi foram abertos para esse conhecimento – não criaram nenhum tipo de empecilho, de entrave –, para que a gente mergulhasse nessa investigação um pouco mais teatralizada, a ponto de a gente chegar a fazer espetáculos hoje baseados em grandes espetáculos, como musicais, circos, enfim, a gente se apropriar de algumas técnicas, aqui tratadas de maneira diferenciadas para revelar um novo momento do boi dentro da arena.
E a gente conseguiu fazer coisasmuito bonitas, muito importantes assim, tanto para o imaginário, como é que a gente recupera o imaginário amazônico e transforma isso em arte, transforma isso numa expressão artística.
Foto: amazonamazonia
A parte de ritual, a parte de lenda amazônica são os veios nos quais a gente pode despejar isso mais claramente. A figura típica regional ainda precisa de alguns ajustes, porque ela ainda faz uma “micagem” do que é o caboclo e não trabalha o caboclo na sua essência, na sua concretude.
Então, se a gente é capaz de levar para um plano imaginário, espetacular, o imaginário amazônico de um modo geral, a gente tem que se deter, especificamente, no que seria esse imaginário caboclo e como transportar isso para o palco de uma maneira grandiosa, mais espetacular. Acho que ainda estamos devendo para esse quadro chamado figura típica um pouco mais de aprofundamento, uma pouco mais de investigação. Não sei se a parte coreografia, porque, talvez ali, tenham criado, desde o início, uma coisa da teatralização, mas uma teatralização meio pastoril, meio jogralizada.
A gente precisava trazer [o item figura típica regional] para um elemento mais moderno. Na realidade é um teatro feito por pantomima, não tem a palavra. A música que o levantador canta na hora da teatralização ela é dramaturgia, ela é o texto, ela ocupa essa região da dramaturgia toda. É na cena o que deve acontecer, já que é um musical, a gente não pode se apropriar da palavra, fazer um trabalho, talvez, mais coreográfico dentro da figura típica, menos teatralizada.
Em verdade, a coreografia tem uma relação muito próxima com a teatralização, mas a dança, que tem uma expressão quase particular, precisa vir mais à tona nesse quadro, para, talvez, a gente poder traduzir a figura do caboclo, esse cotidiano caboclo que a gente se apropria para falar da figura típica da região.
Algumas coisas a gente ainda vai precisar avançar muito, repensar, por conta de que o espetáculo é grandioso, ele é gigantesco, mas não tem maios como a gente fazer “micagem” da Amazônia. É um momento tão importante para própria região, um momento tão importante para questão da conservação; se fala de preservação e não se fala sobre isso de forma achincalhada e de brincadeira, o que acontece realmente é sério, precisa se prestar a atenção para isso realmente.
Acho que a gente tem muito a ensinar a partir da convivência do caboclo com a natureza, tudo o que a gente testemunha, da forma como ele herdou da relação do índio com a terra, essa forma de tratar a terra, de tornar as coisas essencialmente tiradas da floresta, mas repostas; quer dizer, aquilo que não dizima, aquilo que não acaba. Essa relação ainda precisa sair de dentro do espetáculo de maneira mais eficaz. Acho que a gente ainda está muito tímido em relação a isso.
É por conta de que a gente acredita que só a toada é capaz de fazer isso. Quando você diz: não mate a mata, preserve, se isso acontecer [a morte], a Amazônia vai deixar de existir, isso tudo está na poesia, está na toada. Mas eu digo ação concreta na hora da dança, do teatro, na hora da ação humana, ali, junto àquelas imensas alegorias; elas precisam dizer com mais verdade, senão a gente vai ficar num folclore retrógado, aquele folclore que é só a dançano dois pra lá, dois pra cá, e realmente não leva ninguém a nada.
O grande destaque, talvez, da vertente do folclore de Parintins seja essa nova visita ao boi que se pratica há muito tempo dentro da Amazônia, mas visto de uma maneira atualizada.
O boi quer ser teatro, o boi quer ser dança, não é como os bois, por exemplo, folclóricos de outras regiões que aceitam permanecer com a saia feita de pena de espanador, para dizer que é o índio tonto.
Parintins já se preocupa mais, se preocupa mais em criar uma tribo que realmente seja investigada e pesquisada em sua essência, para levar uma representação artística disso com mais fidelidade, e isso dá um caráter especial, digamos assim, mais especial para a vertente do folclore praticado aqui na Amazônia e em Parintins.
Para mim, a influência concreta é Antunes filho, que em São Paulo tem um panteão, por ter sido o cara que mais investigou uma linguagem teatral. Inclusive, assim, Macunaíma foi um marco internacional no teatro brasileiro, e esse teatro vai influenciar diretamente o Brasil interior e influencia também a nossa formação no Amazonas.
A outra grande vertente que vai influenciar também é o Geraldo Thomas, que ele chega com uma linguagem de opera seca, que é uma linguagem voltada para o corpo do ator, não só mais para a palavra, para o que veste a palavra, mas o corpo do ator é absurdamente tratado dentro dessa metodologia que o levou a opera seca.
Essas influências vão ser trazidas para dentro do boi também. A gente vai pegar também experiências ainda muito presentes na feitura do boi, que é o Grupo Galpão, um grupo que mistura elementos do folclore de Minas Gerais com elementos do teatro mais nobre e faz aquele teatro de rua espetacular que eles sabem fazer. Esses movimentos, o Embaúba de Sergipe e outros grupos que vão –até mesmo os balés folclóricos de Olinda e de Recife – nos influenciando para criar uma linguagem, para criar uma cara para o espetáculo do boi.
Mas a gente traz, também, a dança contemporânea muito forte para dentro do boi. A gente começa perceber que mesmo sem técnica, mesmo sem formação, o dançarino daqui tem uma força corporal espetacular, não sei o que é que move isso, é uma coisa meio fenomenal, mas a gente começa a trabalhar a dança com o dançarino daqui e a gente vê a possibilidade de várias companhias de dança. Não sei de o boi vem desde o início brincando com essa coisa de dança, de formar tribo, de movimentar o corpo, a própria toada que faz o caboclo dançar vai dar esse segmento.
É como eu observo a questão das artes plásticas criadas dentro do boi. Ninguém passa por uma academia e é um exímio escultor, um exímio desenhista. Fui pesquisar e aí tem a influência dos padres italianos que vieram para cá, sobretudo padre Miguel Pascale, que é o que traz o conhecimento da técnica e aqui ele vai repassar e essa técnica vai ganhando um espaço fabuloso.
O próprio J. Cerrone, que é um dos cenógrafos do próprio Antunes Filho lá no teatro em São Paulo, que veio visitar o boi, ficou impressionado: Ele disse: “Cacete, aqui tem artista por metro quadrado!”, porque por onde você passa tem gente se expressando de forma artística.
Outro, o Gabriel Vilela, que foi um dos diretores do Grupo Galpão, também se espantou com a quantidade de artistas e com as possibilidades de expressão artística que existe dentro cidade de Parintins, a ponto de comparar Parintins com Florença. Disse-me assim: “Essa cidade é a cidade do artista brasileiro”.
Agora os governos as políticas não investem nisso no sentido de criar escolas universidade de artes em Parintins, porque isso seria um estopim para se criar um nascedouro de grandes expressões artistas em Parintins.
Independentemente disso, o festival por se só já responde, porque é um evento que movimenta bonecos agigantados, que representa a dança especificamente, que representa o teatro. O festival já é um momento em que a gene percebe a importância do artista parintinense e a influência dele dentro do espetáculo.
A gente é movido pela dramaturgia que representa a toada. O poeta sonha, imagina, faz a pesquisa dele ou sobre a cobra grande ou sobre o ritual do alto rio Negro ou sobre a própria Amazônia, porque que você vai encontrar várias vertentes da toada dentro de um mesmo bloco de trabalho. Então, vou da o exemplo do cotidiano do pescador; e a poesia é já te dá subsídios, elementos como a cobra grande, que sempre ameaça o pescador, a história de pescadores que já viram a cobra grande, pescador que pegou peixes enormes.
Essa coisa da solidão do pescador no vazio dos rios da Amazônia, na noite em que ele fica esperando aparecer o cardume para poder pescar, isso leva a gente a ver de uma maneira muito clara de onde sai tanta imaginação.
Quer dizer, o caboclo sozinho na beira de um rio pescando, você sabe que os rios da Amazônia são mares, você, por exemplo, [vê] ao longe o holofote de um barco, o caboclo na solidão dele, aquilo passa tão longe focando, para tantos lugares, que aquilo ali ele já acha que é o olho da cobra grande, já visualiza, já faz a fantasia dele em cima dessas coisas que são muito simples para ser explicados, mas ele tem essa força criativa.
Esses elementos todos vão se constituindo uma partitura, uma dramaturgia, que vai fazer com que se crie um roteiro e esse roteiro vai ser seguido por todos os segmentos do boi. Você tem a história, a espinha dorsal da história, que a dança tem que seguir; que o desenho da alegoria tem que seguir, o desenho figurino tem que seguir, a parte da teatralização tem que seguir.
Ou seja, um eixo principal, para que se mobilize tantas expressões dentro de um quadro só, vem exatamente da dramaturgia que é a toada, a toada é que inspira a realização de um roteiro que vai contar a história desse caboclo.
Foto: amazonamazonia
Na realidade a gente não arisca a entrar de fato na dança contemporânea. A gente usa um meio termo. Ora a gente está trabalhando com a simplicidade da dança folclórica mesmo, mas se apropriando de alguns elementos da dança contemporânea, para fazer com a dança comunique melhor e que, plasticamente, fique mais bonita. Por exemplo, a gente vai coreografar o ritual da tucandeira, que é o ritual de iniciação do curumim, que veste uma luva cheia de formigas tucandeiras, e a gente precisa mostrar, artisticamente, toda a dor que esse curimim sofre.
O garoto vai enfiar a mãos na luva, em mais oito tempos, nos vamos mostrar todo o sofrimento que ele passa, até, nos últimos oito tempos da música, mostrar que ele chegou à vitória, que ele conseguir superar os obstáculos e que ele consegui chegar onde tinha que chegar.
A coreografia é toda escrita como se escreve um roteiro realmente. A coreografia é baseada em todos esses elementos que a gente vai pesquisa. Como é que eles precisam suportar a dor para poder mostrar a virilidade, a possibilidade de já atingirem o campo do índio guerreiro e adulto.
Esses elementos de pesquisa é que vão nos fornecer instrumentos para mobilizar o corpo de maneira necessária para a gente traduzir. Para quem está assistindo, pode não entender os cem por cento do que a coreografia oferece, mas, pelo menos a dor que o índio está sofrendo naquele momento, ela vai deixar vazar como comunicação.
A coreografia é baseada no que realmente significa ou representa aquele determinado objeto de investigação. E o que se vai conceber e o que se vai construir são para comunicar justamente os principais elementos daquele objeto foco de pesquisa. A coreografia nasce de uma célula. Vai aproveitar que a gente trabalha no quadro por quatro. A cada quadro ou a cada oito tempos, a gente está contando, no movimento, que o garoto está chegando à aldeia, em mais oito tempos.
Temos dois momentos. Um, que a gente usa a televisão para a pesquisa. O que é importante para gente captar da televisão, tanto faz ser aberta como fechada? Acontecem muitos eventos dessa televisão que nos são profundamente úteis. Seja um documentário lá na Malásia, de índios que ainda vivem de forma primitiva e para gente é muito importante porque a gente faz conexão com a vida primitiva na região.
Em determinado momento ela transmite isso [o espetáculo dos bois-bumbás] para milhares de telespectadores, e a relação ainda tecnicamente perfeita porque ainda não existe uma compreensão de quem capta escolhe e transmite. Momentos em que eu preciso que o público entenda o que o apresentador está dizendo e a televisão acha que é melhor filmar a galera, mostrar nesse momento a galera. Há um choque realmente na utilização da televisão como comunicação desse espetáculo.
Eles buscam fazer a linguagem deles dentro da nossa linguagem. A gente não prepara o espetáculo para a televisão, a gente prepara o espetáculo para o espectador. Óbvio que a televisão teria que ter esse olhar de espectador, para poder transmitir para o seu público, talvez assim eles entendessem melhor a confecção de um espetáculo gigantesco como é esse nosso.
A televisão, por um lado, é excelente porque nos projeta para o mundo inteiro, nos fornece esses elementos de pesquisa que é fantástico, encurta o tempo da pesquisa por causa dessa globalização da TV, e ao mesmo tempo nos transformar, pode se dizer, em produto cultural mesmo daqueles bem suspeitos, quando a gente, na realidade, é rico na concepção do espetáculo. A televisão só nos serve para isso, assim.
Vejo diversas portas de retorno que o Garantido consegui ir lá abrir e a coisa acontecer com um feedback, realmente, com diversos segmentos. A questão da preservação que se cantou na década de 2000. A gente percebe a importância do boi em alguns processos de compreensão da conservação da Amazônia.
A gente abre essa discussão de fato dentro da Amazônia a partir do boi-bumbá, de verdade;a gente sabe que os cientistas que pesquisaram, que chegaram a esse alerta global, de aquecimento global, da preocupação para a gente preservar a vida no planeta, mas no início dos anos de2000 ninguém falava nisso, era o inicio dessa discussão e o Garantido já cantava: “O índio chorou, o branco chorou…”.
A gente já vinha através da poesia, dos objetivos do espetáculo, a gente já vinha levantando temas que eram de interesse até nacional. É um grande momento em que a gente descobre as possibilidades do boi, do boi como comunicação, do boi na sua relação com a sociedade, que é dar sua contribuição com a cultura, com a contribuição para a educação, e o boi passa atuar de uma maneira mais responsável, principalmente no que diz respeito ao Garantido.
Nada mais desse período em diante sai sem pesquisa, sem fundamentação, sem a preocupação de comunicar de fato o objeto que a gente escolhe como tema do espetáculo, embora não se tenha uma linguagem definida para esse tipo de espetáculo. Já quiseram colocar o involucro da ópera, não casa, é mais do que ópera, porque a ópera é a arte mais completa, é artes plásticas, dança, é música, tudo pode na ópera, diferente do teatro e da dança que têm limitações, mas aqui a gente faz uma coisa que é maior que ópera, no sentido plástico mesmo, no sentido estético, porque a gente não conta uma história, a gente conta várias histórias.
Então me parece o que a gente é mais próximo do que a gente conceitua dentro do campo artístico como revista do que da ópera, porque a revista te dá essa possibilidade de abrir leques dentro de um mesmo espetáculo, já a ópera não.
Na ópera você tem que contar uma história. Então cada quadro apresentado dentro do espetáculo do Garantido são pequenas operetas. Como isso acontece, a gente já meio como que mergulha nessa possibilidade da revista.
A revista não te obriga a criar conexão alguma entre os quadros ou entre os espetáculos de noite para noite. Eu não preciso contar uma história que vai se desenvolver em três noite, como o carnaval que se apropria de um tema e o desenvolve no desfile todo. Aqui não, cada noite você vai encontrar cada quadro diferentes, histórias diferentes, o que deixa todo mundo estarrecido, porque um tema já seria de bom tamanho para um espetáculo de três noites.
Eu [por exemplo] vou falar do povo yanomâmi, e do povo yanomâmi passando para o caboclo juteiro, e o juteiro acabando lá no ritual do povo yanomâmi de novo. Isso já seria o suficiente para desenvolver em três noites, mas como somos meio chicos fogueteiros, o que acontece é que a cada noite você tem quatro quadros, no mínimo, para contar as histórias da Amazônia.
Tecnicamente, esse espetáculo é um espetáculo diferenciado na sua estrutura mesmo, na sua concepção cênica mesmo, e a influencia disso na comunidade vai desde a escola, a escola que pega a toada para falar para o aluno, sobretudo, dessa questão da preservação, acho que é onde o boi contribui mais.
[O boi-bumbá] entranha na comunidade, ele dialoga com outras visões sobre a questão preservação, e assim alguns elementos são utilizados como paradigma, dentro de um curso, dentro de uma palestra. Acho que [o espetáculo do boi-bumbá] faz muito, porque há espetáculos que não comunicam nada, há espetáculos que não dizem nada, e que se dizem contemporâneos. Acho que o boi é contemporâneo na sua essência.
Hoje o espetáculo que a gente faz é absolutamente voltado para essa questão: a comunicação mesmo, sobre como é que as pessoas precisam enxergar a Amazônia. Vamos falar, por exemplo, este ano, de tradição, mas não a tradição voltada para o quintal da gente, que é onde nasce o boi Garantido, de Baixa de São José, de Lindolfo Monte Verde. Vamos passar por isso também, mas a gente tá falando de tradição dentro da construção cultural de uma região chamada amazônica.
Isto é muito importante. Os elementos, por exemplo, que você mostra numa figura típica, numa teatralização de figura típica, como é que o caboclo faz uma farinha, como é que ocaboclo pesca, como é que ele tira uma mandioca, como ele trata um elemento desse da região. Isso tudo vai fazendo com que as pessoas mergulhem um pouco na região, conheçam um pouco melhor a região.
A preocupação é: não vamos nos aventurar pela verdade, porque isso aqui é um espetáculo cênico, um espetáculo teatral, mas também não vamos fugir tanto o dela. Não vamos querer nos atrever de ser científicos nessa coisa, mas ao mesmo tempo precisamos sim de uma base para dizer: olha, o cara que pesquisa erva medicinal na Amazônia se utiliza de uma tradição que vem desde os índios até chegar no curandeiro de hoje, no benzedor, no cara que sabe que crajiru é muito bom para curar garganta, para lavar uma ferida e cicatriza-la, que funciona como um cicatrizante.
O boi se preocupa muito em dar resposta a essas coisas, a conceituar, a dar suporta para isso, para que não fique também uma coisa vazia demais. O caboclo que vai para o rio pescar, ele tem uma tradição, ele tem um costume de fazer aquilo, que de tal forma ele não erra nunca. O homem vai pescar um peixe pirarucu maior que a canoa que ele está. O cara acaba fazendo isso. Tem que tem um conhecimento, uma tradição que vazou para os nossos dais, esse é um grande trunfo do espetáculo do boi, que é comunicar mesmo, fazer com que as pessoas mergulhem na região através do espetáculo.
Foto: amazonamazonia
Acredito só na possibilidade de um dia a gente ser, mesmo que a gente se arrisque a fugir um pouco da toada, ser mais rico musicalmente. O que deixa o espetáculo às vezes modorrento, às vezes muito linear, é justamente a insistência de não se avançar na parte musical.
Acho que as partes coreográficas, plástica, teatral já usaram e abusaram de ousadia a ponto de um grande curupira bater palmas, rir dentro da arena, manipulado por quase setenta pessoas, um boneco de quinze metros de altura. A gente já fez coisas muito espetaculares em nível coreográfico dentro da arena; e a parte musical, por mais que a gente saiba que tem diferença de uma toada para a outra dentro de um mesmo CD, mas ela ainda é um ritmo muito preso à tradição, muito fechado na tradição.
Mas acho que não precisa fugir disso, mas acho que a gente precisa incursionar por outros caminhos musicais para dar um equilíbrio mais dinâmico para o espetáculo. É diferente você ver um Circo de Soileil, que se apropria de varia linguagens também e monta espetáculos magníficos, mas o suporte musical deles é uma quebra, uma mudança de música para música. Isso faz com que o espectador entre de fato no espetáculo, se emocione com a música.
Aqui a música, para emocionar, ela tem que ter uma letra espetacular, como é essa música do Emerson Maia, que é o Lamento de raça, ela tem que ser muito forte para emocionar, senão é a batida tic tic tac! [durante] duas horas e meia dentro da arena e não muda isso, não modifica, não investe numa nova incursão.
Já que a gente abusou tanto da espetacularização do imaginário Amazônico, da mitologia indígena etc, porque não fugir um pouco para que o índio faz na música, fugir um pouco para outras vertentes da música, sem que a toada sofra, digamos, nenhum tipo de ameaça de extinção, mas eu acho que ela tem que avançar.
Algumas incursões de jovens poetas, de jovens compositores, como é o caso do Enéas Dias. Ele está fazendo umas incursões que eu vejo que é a continuação de uma pesquisa deixada pelo Paulinho Du Sagrado dentro do Garantido. O Enéas pega essa experiência e vai mais além com ela, acho que, na medida em que o compositor começa ousar, começa a penetrar em outras possibilidades, aí eu acho que a gente ganha mais com o espetáculo. A parte musical ainda vejo como o grande desafio do boi.
Foto: Pitter Freitas/Prefeitura de Parintins
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